A Ponte Quebrada entre a Pesquisa e o Paciente: Um Chamado à Ação para Fisioterapeutas e Osteopatas

Escrito por Dr. Bruno Moreno (D.O.) | @brunogdmoreno

Introdução: Além da Técnica, a Evidência que Transforma

Na Fisioterapia e na Osteopatia, a busca pela excelência clínica nos impulsiona. Dominamos técnicas, aprimoramos o raciocínio clínico e nos dedicamos a cada paciente. Um pilar fundamental dessa excelência é a Prática Baseada em Evidências (PBE), que integra a melhor pesquisa disponível, a expertise do clínico e os valores do paciente [1]. Contudo, uma questão crítica emerge: a evidência que consumimos se traduz, de fato, em benefícios reais e significativos para as pessoas que tratamos?

A resposta, infelizmente, nem sempre é positiva. Existe uma lacuna preocupante entre os resultados publicados em ensaios clínicos e o seu impacto real na vida do paciente. Este artigo, inspirado por uma análise contundente de Heneghan, Goldacre e Mahtani no periódico Trials [2], mergulha nas razões dessa desconexão e lança um chamado à ação para todos os fisioterapeutas e osteopatas: é hora de nos tornarmos consumidores mais críticos e conscientes da ciência que guia nossa prática.

O Problema Central: Por que os Resultados dos Estudos Falham?

Um ensaio clínico pode apresentar resultados estatisticamente significativos, mas isso não garante que a intervenção seja clinicamente importante para o paciente. O artigo de Heneghan e seus colegas [2] aponta falhas sistêmicas no ciclo da pesquisa – desde a concepção até a publicação – que distorcem a evidência e enfraquecem a ponte entre a ciência e a prática clínica. Esses problemas podem ser agrupados em como os desfechos (os resultados medidos) são escolhidos, coletados, relatados e interpretados.

Problema na PesquisaDescriçãoImplicação para a Prática Clínica
Desfechos Mal EscolhidosMedem-se resultados que não são diretamente relevantes para o bem-estar ou funcionalidade do paciente.Uma técnica pode parecer eficaz no papel (ex: melhora de um marcador biológico), mas não alterar a dor ou a capacidade funcional do paciente.
Coleta de Dados FalhaPerda de participantes ou dados incompletos podem invalidar as conclusões de um estudo.Resultados podem ser superestimados, levando à adoção de tratamentos que não são tão eficazes quanto parecem.
Relato SeletivoApenas os resultados positivos são publicados (viés de publicação) ou destacados (viés de relato).A comunidade clínica fica com uma visão incompleta e excessivamente otimista sobre a eficácia de uma intervenção.
Interpretação InadequadaOs dados são apresentados de forma a exagerar o benefício clínico, usando “spin” ou medidas relativas.Fisioterapeutas e osteopatas podem ser levados a acreditar que um tratamento é mais poderoso do que realmente é.

Desconstruindo a Evidência: As Armadilhas nos Desfechos Clínicos

O cerne da questão reside no que os pesquisadores decidem medir. Para o fisioterapeuta e o osteopata, o objetivo é quase sempre melhorar a função, reduzir a dor e aumentar a qualidade de vida. Mas será que os estudos refletem isso?

“As escolhas de tratamento de pacientes e clínicos devem ser informadas por evidências de que as intervenções melhoram os desfechos que são relevantes para os pacientes. A pesquisa médica, muitas vezes, fica aquém desse ideal.” – Heneghan C, et al. (2017) [2]

Desfechos que Enganam

  • Desfechos Substitutos (Surrogate Outcomes): São marcadores indiretos que se presume refletirem um desfecho real. Por exemplo, medir a densidade óssea como um substituto para o risco de fraturas. O problema é que a correlação pode ser fraca ou inexistente. Um tratamento pode melhorar o marcador substituto, mas não o resultado que realmente importa para o paciente, ou, pior, até mesmo causar danos [2].
  • Desfechos Compostos (Composite Outcomes): Agrupam vários resultados em uma única medida (ex: morte OU infarto OU hospitalização). Isso pode superestimar o efeito do tratamento, especialmente se o benefício for impulsionado pelo componente menos importante do desfecho [2].
  • Desfechos Subjetivos: Quando a avaliação depende de um julgamento (seja do paciente ou do avaliador), há um alto risco de viés, especialmente se os avaliadores não forem “cegos” para o tratamento que o paciente recebeu. Uma revisão sistemática mostrou que avaliadores não cegos tendem a exagerar os efeitos do tratamento em até 36% [3].

O Fantasma dos Dados Ocultos

Além da escolha dos desfechos, a forma como são relatados é um problema grave. O viés de publicação – a tendência de estudos com resultados positivos serem publicados com mais frequência do que aqueles com resultados negativos ou nulos – é uma ameaça real. Estima-se que quase metade de todos os ensaios clínicos nunca chegam a ser publicados em sua totalidade [2].

Pior ainda é o viés de relato seletivo, onde, mesmo em um estudo publicado, os pesquisadores omitem ou minimizam desfechos que não foram favoráveis à intervenção. Um estudo recente no campo da reabilitação confirmou a existência de grandes discrepâncias entre os desfechos primários definidos nos protocolos de pesquisa e aqueles efetivamente publicados nos artigos finais [4].

O Impacto na Fisioterapia e Osteopatia

Esses problemas não são abstrações acadêmicas; eles têm consequências diretas em nossa prática diária. Quando um estudo sobre dor lombar foca apenas na melhora de graus de amplitude de movimento, mas não na capacidade do paciente de voltar ao trabalho ou de brincar com seus filhos, estamos diante de uma evidência de valor limitado. A osteopatia, com sua abordagem holística, e a fisioterapia, focada na funcionalidade, dependem crucialmente de desfechos que capturem a experiência completa do paciente.

Felizmente, há um movimento crescente para resolver essa questão. A criação de Core Outcome Sets (COS) – conjuntos de desfechos padronizados e acordados por pesquisadores, clínicos e pacientes – é uma das soluções mais promissoras. Iniciativas como a COMET (Core Outcome Measures in Effectiveness Trials) [5] buscam garantir que todos os estudos em uma determinada área meçam os resultados que mais importam, permitindo comparações justas e sínteses de evidências mais robustas.

No campo da reabilitação e da osteopatia, já existem evidências de alto nível que suportam intervenções para condições como dor lombar, ciática e radiculopatia cervical [6], e pesquisas mostram que o tratamento manipulativo osteopático pode ser eficaz na redução da dor e melhora da função [7]. No entanto, a qualidade e a relevância dessa base de evidências dependem de nossa capacidade de exigir e utilizar pesquisas metodologicamente sólidas.

Um Chamado à Ação: Rumo a uma Prática Verdadeiramente Baseada em Evidências

Como profissionais na linha de frente, temos o poder e a responsabilidade de impulsionar a mudança. Não podemos mais ser receptores passivos de informação. Devemos nos tornar avaliadores críticos e ativos.

  1. Seja um Consumidor Crítico da Ciência: Não leia apenas o resumo. Vá aos métodos. Questione os desfechos medidos: Eles são relevantes para o seu paciente? O estudo foi pré-registrado? Os autores relataram todos os desfechos pré-especificados? Ferramentas como a base de dados PEDro são essenciais para encontrar estudos de maior qualidade metodológica [1].
  2. Priorize Desfechos Centrados no Paciente: Na sua prática e na sua leitura, coloque o foco em resultados que fazem a diferença no dia a dia do paciente: dor, função, qualidade de vida, retorno às atividades sociais e de trabalho.
  3. Adote a Tomada de Decisão Compartilhada: A PBE moderna é um tripé: a melhor evidência, sua expertise clínica e os valores e preferências do paciente. Discuta abertamente as opções de tratamento, as evidências por trás delas (incluindo suas limitações) e construa um plano terapêutico em conjunto com o paciente.
  4. Exija Transparência e Qualidade: Apoie iniciativas como a AllTrials, que luta pelo registro e publicação de todos os ensaios clínicos. Incentive e participe do desenvolvimento de Core Outcome Sets para a fisioterapia e a osteopatia.

Conclusão

A Prática Baseada em Evidências é a nossa bússola para uma prática clínica de alta qualidade. No entanto, uma bússola só é útil se soubermos interpretar corretamente suas leituras e reconhecer quando ela está sendo afetada por desvios magnéticos. Ao nos tornarmos mais críticos em relação à evidência que consumimos, não estamos apenas nos protegendo de informações falhas; estamos, acima de tudo, honrando nosso compromisso fundamental: oferecer o melhor cuidado possível, que se traduza em benefícios reais e duradouros para a vida de nossos pacientes.

Referências

  1. Roos, R. (2025). Current state of evidence-based practice in clinical physiotherapy. South African Journal of Physiotherapy, 81(1), 2139. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC12135705/
  2. Heneghan, C., Goldacre, B., & Mahtani, K. R. (2017). Why clinical trial outcomes fail to translate into benefits for patients. Trials, 18(1), 122. https://doi.org/10.1186/s13063-017-1870-2
  3. Hróbjartsson, A., Thomsen, A. S., Emanuelsson, F., Tendal, B., Hilden, J., Boutron, I., … & Brorson, S. (2012). Observer bias in randomised clinical trials with binary outcomes: systematic review. BMJ, 344, e1119. https://www.bmj.com/content/344/bmj.e1119
  4. Komukai, K., Sugita, S., & Fujimoto, S. (2024). Publication Bias and Selective Outcome Reporting in Randomized Controlled Trials Related to Rehabilitation: A Literature Review. Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 105(1), 153-161. https://www.archives-pmr.org/article/S0003-9993(23)00362-3/fulltext
  5. Williamson, P. R., Altman, D. G., Bagley, H., Barnes, K. L., Blazeby, J. M., Brookes, S. T., … & Tugwell, P. (2012). The COMET (Core Outcome Measures in Effectiveness Trials) Initiative. Trials, 13(1), 1-2. https://trialsjournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/1745-6215-13-S1-A70
  6. Khalaf, Z. M., Al-Dujaili, A. H., & Al-Dahhan, N. A. (2023). Valid and Invalid Indications for Osteopathic Interventions: A Mini-Review. Cureus, 15(12), e50841. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC10756711/
  7. Zipp, C. R., & Gendreau, D. A. (2025). An overview of systematic reviews on the efficacy and safety of osteopathic manipulative treatment. Journal of Bodywork and Movement Therapies, 41, 1-10. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1360859225000993
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