Na prática clínica da fisioterapia, é comum prescrevermos exercícios de fortalecimento e atividades aeróbicas para um mesmo paciente, muitas vezes na mesma sessão. Essa abordagem, conhecida como treinamento concorrente, é fundamental para a reabilitação funcional, melhora da capacidade cardiorrespiratória e promoção da saúde geral. No entanto, uma questão persiste: a combinação desses dois estímulos distintos pode gerar uma “interferência” que limita os ganhos de força? E, mais importante, a ordem em que os exercícios são realizados pode otimizar ou prejudicar os resultados?
Este artigo explora o fenômeno do efeito de interferência no treinamento concorrente, com base em uma robusta revisão sistemática e meta-análise de Eddens et al. (2017), e discute as implicações práticas para fisioterapeutas e profissionais da reabilitação, visando a prescrição de exercícios mais eficaz e baseada em evidências.
O Que é o Efeito de Interferência?
O conceito de “efeito de interferência” foi introduzido pela primeira vez em um estudo seminal de Hickson, em 1980. Ele observou que realizar treinamento de força e de endurance (aeróbico) simultaneamente resultava em ganhos de força atenuados em comparação com o treinamento de força realizado isoladamente [1]. Essencialmente, os estímulos fisiológicos opostos – um visando a hipertrofia e a força (via sinalização mTOR) e o outro, a resistência à fadiga e a capacidade oxidativa (via sinalização AMPK) – poderiam competir entre si em nível molecular [2].
Desde então, a ciência do exercício tem se debruçado sobre esse fenômeno. Uma meta-análise de Wilson et al. (2012) confirmou que o efeito de interferência é real, especialmente para ganhos de força e potência, e que sua magnitude é influenciada por fatores como frequência, volume e a modalidade do exercício aeróbico (com a corrida mostrando maior interferência que o ciclismo) [2].
Isso nos leva à questão central para a prática clínica: se um paciente precisa realizar ambos os tipos de treino na mesma sessão, como podemos organizar os exercícios para minimizar a interferência e maximizar os resultados?
A Sequência dos Exercícios: O que a Melhor Evidência Diz?
Para responder a essa pergunta, a revisão sistemática com meta-análise de Eddens et al. (2017), publicada na renomada revista Sports Medicine, analisou 10 estudos de alta qualidade para determinar o impacto da sequência de exercícios intra-sessão [3]. Os pesquisadores compararam duas condições:
- RES-END: Treinamento de Resistência (força) seguido por Treinamento de Endurance (aeróbico).
- END-RES: Treinamento de Endurance (aeróbico) seguido por Treinamento de Resistência (força).
Os resultados, resumidos na tabela abaixo, são extremamente esclarecedores e têm aplicação direta na nossa prática.
| Desfecho Analisado | Resultado da Comparação (RES-END vs. END-RES) | Significado Clínico |
| Força Dinâmica de Membros Inferiores | Superioridade de 6,91% para a sequência RES-END (p=0,006) | Estatísticamente significativo. Para ganhos de força em movimentos como agachamento e leg press, começar pelo treino de força é mais eficaz. |
| Força Estática de Membros Inferiores | Sem diferença significativa (p=0,98) | A ordem não parece influenciar os ganhos de força isométrica. |
| Hipertrofia Muscular | Sem diferença significativa (p=0,40) | Para o aumento da massa muscular, a sequência dos exercícios parece não ser um fator determinante. |
| Capacidade Aeróbica Máxima (VO2máx) | Sem diferença significativa (p=0,83) | Os ganhos de capacidade cardiorrespiratória não são prejudicados por nenhuma das sequências. |
| Percentual de Gordura Corporal | Sem diferença significativa (p=0,42) | A ordem dos exercícios não impacta as mudanças na composição corporal. |
A principal conclusão da meta-análise é clara: a sequência de exercícios só importa significativamente para o desenvolvimento da força dinâmica. Realizar o treinamento de força antes do treinamento aeróbico leva a maiores ganhos de força em membros inferiores.
Implicações Práticas para a Fisioterapia
Esses achados oferecem um guia prático para a prescrição de exercícios na reabilitação. A decisão sobre qual exercício realizar primeiro deve ser orientada pelo objetivo principal do tratamento para aquele paciente, naquela fase específica da reabilitação.
- Quando o Objetivo é Maximizar a Força Funcional: Em cenários pós-operatórios (ex: reconstrução de LCA), reabilitação de tendinopatias, ou em idosos com sarcopenia, onde o ganho de força dinâmica é a prioridade, a prescrição deve ser clara: inicie a sessão com os exercícios de fortalecimento. A fadiga residual do treino aeróbico pode prejudicar a qualidade, o volume e a intensidade do treino de força subsequente, limitando as adaptações neuromusculares necessárias [3].
- Quando o Foco é a Capacidade Cardiorrespiratória ou a Hipertrofia: Se o objetivo primário for a melhora do condicionamento aeróbico (ex: reabilitação cardíaca) ou o ganho de massa muscular (ex: tratamento de caquexia), a ordem dos exercícios torna-se flexível. Como a meta-análise não encontrou diferenças para hipertrofia ou VO2máx, a escolha pode ser baseada na preferência do paciente, na logística da clínica ou em outros fatores clínicos.
- Prescrição Individualizada e Periodizada: O fisioterapeuta pode periodizar a ênfase do treinamento. Em um bloco inicial focado em ganhos de força, a sequência RES-END seria a mais indicada. Em um bloco subsequente, focado em resistência muscular ou capacidade aeróbica, a ordem poderia ser invertida ou mantida com base na resposta do paciente.
Conclusão: Uma Ferramenta para Otimizar Resultados
O treinamento concorrente é uma ferramenta indispensável na fisioterapia moderna. A controvérsia sobre o efeito de interferência, que por muito tempo gerou incertezas, agora possui uma diretriz prática e baseada em evidências sólidas. A meta-análise de Eddens et al. (2017) nos mostra que, embora o efeito de interferência exista, ele pode ser manipulado a nosso favor.
Para fisioterapeutas e osteopatas, a mensagem é que a ordem dos exercícios não é um detalhe trivial, mas sim uma variável de prescrição estratégica. Ao priorizar o treinamento de força no início da sessão, estamos aplicando um princípio científico para otimizar os ganhos de força dinâmica, um componente essencial para a função e qualidade de vida de muitos de nossos pacientes. Tomar decisões informadas sobre a sequência de exercícios é, portanto, um passo crucial para elevar a qualidade de nossos tratamentos e alcançar melhores desfechos clínicos.
Referências
- Hickson, R. C. (1980). Interference of strength development by simultaneously training for strength and endurance. European Journal of Applied Physiology and Occupational Physiology, 45(2-3), 255–263. https://doi.org/10.1007/BF00421333
- Coffey, V. G., & Hawley, J. A. (2017). Concurrent exercise training: do opposites distract?. The Journal of Physiology, 595(9), 2883–2896. https://doi.org/10.1113/JP272270
- Eddens, L., van Someren, K., & Howatson, G. (2018). The Role of Intra-Session Exercise Sequence in the Interference Effect: A Systematic Review with Meta-Analysis. Sports Medicine, 48(1), 177–188. https://doi.org/10.1007/s40279-017-0784-1